A vida do mentor do modernismo brasileiro sempre foi cercada de mistério. A correspondência com o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa, uma espécie de pai postiço do escritor, abre caminho para a compreensão das angústias do homem e, em consequência, de sua obra
O escritor Mário de Andrade. Entre 1917 e 1945, ele manteve com o “tio Pio” uma correspondência sobretudo afetiva — e a mais longa de sua vida
Por João Pombo Barile
Em uma das incontáveis cartas que escreveu, Mário de Andrade relatou a Manuel Bandeira: "O caso típico da minha afetividade foi a morte de meu mano mais moço, que me levou quase pra morte também. (...) os médicos chegaram a não dar mais nada por mim. Não comia, não dormia. Foi o bom senso de um tio, espécie de neurastênico de profissão, que me salvou. Pegou em mim, me levou pra fazenda dele, me deixou lá sozinho. (...) Voltei poeta da fazenda". Referindo-se ao episódio da morte de seu irmão Renato, em decorrência de uma cabeçada em um jogo de futebol em 1913, quando este contava apenas 14 anos, o grande mentor do modernismo revelava a importância do fazendeiro Pio Lourenço Corrêa — o "tio" da carta — na sua formação. Uma formação que, além dos aspectos literários e teóricos, foi forjada também nas angústias e neuroses do autor de Macunaíma.
Boa parte dessa faceta pessoal de Mário de Andrade pode ser vislumbrada em Pio & Mário — Diálogo da Vida Inteira, que chega às livrarias neste mês. O volume, ilustrado por dezenas de fotos, reúne 105 cartas de Pio e 84 de Mário, escritas entre 1917 a 1945. É a mais longa troca de correspondência do escritor de que se tem notícia, começando quando ele era ainda um desconhecido e indo até cinco dias antes de sua morte. Discreto, Mário falava pouco da vida íntima. Embora não seja pródiga em desabafos, a correspondência com Pio é das mais pessoais entre todas as que Mário mantinha. Bem esmiuçada, pode abrir caminho para a compreensão das angústias do escritor, estudo que seria importantíssimo para a melhor compreensão de sua obra.
Mas quem era Pio? Nascido em 1875, tinha 18 anos a mais que Mário e, embora este o chamasse de "tio", Pio era, na realidade, casado com sua prima Zulmira de Moraes Rocha. O casal era proprietário da chácara Sapucaia, em Araraquara, no interior de São Paulo, onde o escritor se hospedava com frequência. Foi lá que, deitado em uma rede durante uma semana de 1927, Mário escreveria Macunaíma. "É a minha Pasárgada", gostava de dizer.
À diferença dos outros correspondentes de Mário, Pio não era artista, mas teve um papel fundamental na trajetória do escritor por conta dessa dimensão afetiva. Embora a correspondência seja pontuada por discussões intelectuais (Pio manifesta restrições, por exemplo, a Amar, Verbo Intransitivo e a Macunaíma), esse não era, evidentemente, o ponto principal da relação. Quem o diz com clareza é Mário. Numa carta datada de 11 de maio de 1931, ele escreve a respeito das divergências: "Às minhas loucuras, fantasias, curiosidades, a sua simplicidade sistematizada de ser deu maior paciência, mais precisão de fortificarem-se no estudo; à minha sensibilidade o senhor e sua vida trouxe novos lados, desconhecidos antes, por onde ela se experimentasse e enriquecesse; e finalmente à riqueza milionária das minhas fraquezas veio a sua belíssima e tão nobre atitude moral por freios".
Com essa "nobre atitude moral" a colocar freios, Pio foi uma espécie de pai postiço de Mário, cuja relação com o pai verdadeiro, o jornalista Carlos Augusto de Andrade, sempre foi conturbada. Um dos fundadores do primeiro vespertino da capital paulista, a Folha da Tarde, Carlos seria sempre retratado como figura autoritária na obra do filho escritor — como no poema A Escrivaninha (1922) e no conto O Peru de Natal (1938-1942).
Não eram poucas as angústias familiares de Mário. Espécie de caçula indesejado, "meio amulatado e feio", como dizia, conviveu na infância com a predileção da família por Renato, o irmão "bonito e loiro". Talvez por isso a morte precoce e trágica do menino tenha devastado tanto Mário, a ponto de, como já vimos relatado pelo próprio escritor, ter-se tornado um divisor de águas. Pio estava lá, mas os acontecimentos deixariam marcas em Mário, sobretudo um tremor nas mãos que o impediria de ser concertista.
Ao componente racial, motivo de um complexo que acompanharia o escritor ao longo da vida, somaram-se questões de classe. À diferença de Oswald de Andrade, por exemplo, o "homem sem profissão" que assumiria a vanguarda literária do início do século 20 financiado pela fortuna pessoal, Mário foi o protótipo do que o sociólogo Sergio Miceli chamou de o "primo pobre" do modernismo brasileiro. Nascido na capital paulista em 1893 e formado no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Mário teria de trabalhar a vida inteira, levando uma vida modesta de professor.
Com seu "complexo de inferioridade orgulhosíssimo", como escreveu em certa ocasião, Mário também se tornaria um homem metódico e cioso de sua memória. Desde 1923, ele já catalogava todos os seus documentos, e hoje seus milhares de cartas e fichas de leitura estão devidamente guardados no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP). No artigo Fazer a História, de 1944, ele escreveu: "Tudo será posto a lume um dia, por alguém que se disponha a realmente fazer a História. E imediato, tanto correspondências como jornais e demais documentos não opinarão como nós, mas provarão a verdade".
"BONECA DE PICHE"
A despeito de tamanho cuidado de Mário, ainda existem vários pontos obscuros em sua biografia. O principal — e mais polêmico de todos — diz respeito à suposta homossexualidade do escritor. O tema foi levantado pela primeira vez pelo jornalista e escritor Moacir Werneck de Castro em 1989, no livro Mário de Andrade: Exílio no Rio, em que narra sua convivência com o poeta entre os anos 1938 e 1940, quando Mário lecionou na capital fluminense. "Na raiz do drama existencial de Mário de Andrade jaz a angústia da sexualidade reprimida e transformada em difusa pan-sexualidade", escreveu.
Em 1998, foi a vez da escritora Rachel de Queiroz, que, em Tantos Anos, sua autobiografia, afirmou que Mário teria sido mais feliz se tivesse assumido a homossexualidade. Entretanto, o que se falou sobre o assunto se esgota praticamente aí. Há até hoje um cordão de isolamento em torno do assunto entre seus herdeiros paulistas, e há quem diga — principalmente em universidades de outros estados — que existe uma parte da correspondência de Mário que segue sob censura na Universidade de São Paulo, onde está baseada.
Longe de pertencer ao reino da fofoca, o tema é fundamental para entender a obra de Mário e algumas de suas relações pessoais mais importantes — como, por exemplo, a amizade entre o escritor e a pintora Anita Malfatti. Pelas cartas que ambos trocaram, pode-se inferir que a artista alimentou um amor platônico por Mário, ao qual ele nunca correspondeu. O estudo do tema é também fundamental para entender uma questão central do modernismo, o rompimento entre Mário e Oswald. Em artigo sobre o assunto, o jornalista Humberto Werneck conta como o autor de Serafim Ponte Grande gostava de fazer piadas venenosas sobre a suposta homossexualidade de Mário. Oswald chegou a escrever, por exemplo, que de costas Mário se parecia muito com Oscar Wilde, numa alusão ao escritor inglês que enfrentou um doloroso processo judicial por causa da orientação sexual.
Em tom de brincadeira, Oswald também gostava de assinar artigos com o codinome Cabo Machado, referência a um personagem de um poema de Mário: "Cabo Machado é cor de jambo,/ (...) Cabo Machado é moço bem bonito./ (...) Cabo Machado é doce que nem mel (...)". De acordo com Mário da Silva Brito, o historiador pioneiro do modernismo também citado no artigo de Humberto Werneck, o rompimento definitivo pode ter ocorrido por causa de um texto escrito por Oswald em 1929, com o título Boneca de Piche — alusão à suposta homossexualidade e à cor da pele do escritor.
Naquela mesma carta endereçada a Pio no dia 11 de maio de 1931, Mário escreve mais adiante: "Estava carecendo deste desabafo e me sinto feliz agora. Desabafo saído com toda a espontaneidade e que teve a enorme utilidade de me botar bem no meu lugar". Quem sabe a divulgação da correspondência com Pio Lourenço, revelando "desabafos" como aquele, não ajude a chegar a uma "verdade" mais completa sobre Mário, como ele queria. Tabus infundados têm atrapalhado as pesquisas sobre a biografia de Mário de Andrade. Que a correspondência com o "tio Pio" ajude a colocá-los por terra. A moderna teoria literária prega que só o entendimento do homem, em sua inteireza, pode ajudar a compreender e iluminar a obra do escritor.
João Pombo Barile é jornalista.
O LIVRO
Pio & Mário — Diálogo da Vida Inteira. Edições Sesc SP/Ouro Sobre Azul, 424 págs., R$ 96.
LEIA TAMBÉM
Obra Imatura, de Mário de Andrade. Agir, 224 págs., R$ 49,90.