sábado, 19 de abril de 2008

A corrente afetiva


A comovente despedida escrita por Deífilo Gurgel na forma de uma carta sem resposta, publicada no Jornal de Natal a 25 de outubro de 1993, pareceu assinalar o fecho de uma longa trajetória, marcada por um inesperado e tardio ressurgimento, seguido de um breve e derradeiro período de ostracismo. A morte de Chico Antonio, aos 89 anos, nos fez presumir que ele estava condenado para sempre ao esquecimento.

Investido da autoridade de quem resgatou o cantador de côco do anonimato, 50 anos depois do seu encontro com Mário de Andrade em 1929, proporcionando-lhe um novo período de celebridade, Deífilo Gurgel evocou na carta sem resposta alguns dos momentos vividos por Chico Antonio depois de ter sido “redescoberto”, graças à publicação de O turista aprendiz – a noite em que recebeu, pela primeira vez, a visita do pesquisador de danças folclóricas, os encontros com Câmara Cascudo e Aloísio Magalhães, a gravação do disco Na pancada do ganzá, a ida a São Paulo para se apresentar no programa Som Brasil, os “momentos de alegria” que compartilharam.

Ao receber a notícia da morte de Chico Antonio, Deífilo Gurgel se recusou a acreditar que era verdadeira pois, para ele, “quem tem um padrinho do tamanho de Mário de Andrade não morrerá, jamais.” Os mais céticos, no entanto, imaginaram que Chico Antonio estivesse mesmo condenado a desaparecer da memória coletiva.

Eis se não quando surge uma amorosa pesquisadora e resgata Chico Antonio, trazendo-o, mais uma vez, à tona, demonstrando assim que Deífilo Gurgel, de certa maneira, tinha razão. Gilmara Benevides Costa é o mais recente elo da poderosa corrente afetiva iniciada quando Mário de Andrade e Chico Antonio se conheceram no engenho Bom Jardim, graças à amizade de Antonio Bento. Corrente que continuou a se fortalecer com a dedicação de Oneyda Alvarenga, Telê Porto Ancona Lopez e Raimunda de Brito Batista à edição dos escritos de Mário de Andrade referentes a Chico Antonio.

Agora, a contribuição de Gilmara Benevides Costa acrescenta mais um elo essencial a essa corrente. Além de consolidar as esparsas informações biográficas existentes, ela estudou in loco a visão que os conterrâneos tinham do cantador, e ainda reconstituiu a triste história dos seus últimos anos, durante os quais voltou ao anonimato. Melancólico, sob vários aspectos lamentável, o final da vida de Chico Antonio carecia ser contado para que não prevalecesse para sempre apenas a visão algo idealizada que, de certa maneira, Mário de Andrade começou a construir e que, depois dele, muitos de nós cultivamos.

O canto sedutor de Chico Antonio evidencia mais uma vez a extraordinária força dessas duas personalidades, uma de intelectual paulistano, outra de cantador de côco nordestino, que tendo convivido por apenas alguns dias, deixaram para sempre, um no outro, impressão tão poderosa que continua a despertar paixões como a que transparece do texto de Gilmara Benevides Costa.

Eduardo Escorel
Rio, 7/8/04

Chico Antônio, o herói com caráter (documentário de Eduardo Escorel)

Artigo retirado do site:
Direção: Eduardo Escorel, Marco Alberz
Ano Produção: 1983 Origem: Brasil Duração: 40 min.

Sinopse: O resgate de um personagem real da obra de Mário de Andrade. Chico Antônio é um cantador e catador de côco do interior do Rio Grande do Norte. Enquanto subia os caules para alcançar os frutos, cantava e encantava quem por ali passasse. E Mário de Andrade foi um desses espectadores, pois adorava o clima quente das terras equatoriais. Recebeu do próprio Chico o ganzá que o acompanhava na cantoria. Esta honraria ele jamais esqueceu, fazendo-o imortal em sua obra literária. O diretor foi até o local onde os artistas se encontraram, na década de 20, e encontraram um senhor de 87 anos, com fôlego e memória para reviver os momentos da juventude. Fotos da visita de Mário de Andrade ao nordeste ilustram os relatos. Destaque para o encontro eletrônico entre Chico Antônio e Antônio Bento, o dono da fazenda onde trabalhou. O diretor gravou um tape do cantador e mostrou ao ex-fazendeiro no Rio de Janeiro, e vice-versa.

O canto sedutor do coquista Chico Antônio: memória, política e turismo cultural


Gilmara Benevides

Mestrado em Antropologia Cultural UFPE

Texto na íntegra:


RESUMO Francisco Antônio Moreira (1904-1993) nasceu em Cortes, distrito rural de Pedro Velho, município da região agreste do Estado do Rio Grande do Norte. A atuação do mediador cultural Antônio Bento de Araújo Lima (1902-1988), na época Deputado Estadual e crítico de arte, foi muito importante para a realização de um ‘evento histórico’: ele provocou o encontro do artista popular, o embolador de cocos Chico Antônio com o musicólogo Mário de Andrade (1893-1945) em janeiro de 1929. A partir deste encontro, Chico Antônio ficou conhecido como o coquista ‘descoberto’ por Mário de Andrade, que o cita em suas pesquisas nos livros ‘Os Cocos’, ‘Vida de Cantador’, ‘O Turista Aprendiz’ e ‘Danças Dramáticas’.

Este trabalho é um resumo de considerações elaboradas para a escrita de dissertação homônima para o Mestrado em Antropologia Cultural, a partir do estudo de caso do evento cultural Encontro de Cultura, Artes e Humanidades, a Semana Chico Antônio, que aconteceu entre 26 e 29 de dezembro de 2002 analiso em campo as categorias teóricas memória social e práticas culturais focando meu interesse em três grupos distintos: a) os agentes culturais locais, b) os familiares de Chico Antônio e c) os críticos do evento. Procuro interpretar estas categorias tendendo a aproximar o ‘saber local’ representado pelos intelectuais regionais à ‘memória nacional’ o contexto histórico-cultural nacional.

A especificidade desta prática social revela a visão de ‘cultura’ elaborada por um grupo local e suas práticas demonstram haver uma busca pela inserção através do turismo cultural regional. Enfim, pretendo com este trabalho analisar a relação entre cientistas sociais e seus interlocutores ‘nativos’, enquanto construção cultural democrática – utilizando-se assim de políticas públicas, em especial as políticas culturais, como formação de público cidadão, à responsabilidade social e a melhoria de vida dos habitantes locais sem que precisemos cair em tutelas ou paternalismos, mas atuando como intérpretes e agentes produtores de culturas.

O canto sedutor de Chico Antônio



Gilmara Benevides Costa
ISBN 85-7273-210-1
2004
R$ 10,00
144 páginas
http://www.editora.ufrn.br/xs.php?table=edicoes&iddetail=169&page=detalhe&search=chico%20antônio

No livro O Canto Sedutor de Chico Antônio, editado pela Editora da UFRN, Gilmara Benevides Costa apresenta-nos o resultado de longa pesquisa na construção de um aprofundado estudo biográfico sobre o fabuloso embolador e cantador de cocos Chico Antônio, inserindo-se o seu trabalho, a partir de agora, nos debates em torno da história e da cultura potiguar, da memória e da identidade nacional.Gilmara Benevides faz um verdadeiro mapeamento dos lugares onde Chico Antônio viveu e maravilhou a todos: em Pedro Velho, Montanhas, Canguaretama e Goianinha, no Rio Grande do Norte, e em São Paulo, onde apresentou-se já no final da vida.

Para tanto, foi morar em Montanhas, conviver com o povo, estabelecendo contatos pessoais e vivenciando a realidade de cada um – o que lhe permitiu reconstruir, a partir das histórias de vida, as próprias relações do povo com o seu meio, a sua história e a sua cultura. E aí encontrar o cantador potiguar Chico Antônio, vivo na memória e na afetividade.Além disso, como se não bastasse ao seu espírito de estudiosa e pesquisadora, reuniu vasta biografia, realizou estudos e entrevistas, visitou lugares, participou de seminários e debates, perquiriu, foi buscar respostas às indagações, mergulhou fundo, encantou-se.Agora, presenteia-nos, revelando um Chico Antônio de singela beleza.

Um ser iluminado que admirou escritores e intelectuais do porte de Mário de Andrade, Antonio Bento de Lima, Câmara Cascudo, Oneyda Alvarenga, Telê Porto Ancona, Raimunda de Brito Batista, Eduardo Escorel, Aloísio Magalhães, Lélia Gontijo Soares, Deifilo Gurgel e Diógenes da Cunha Lima. Ou multiartistas, compositores e músicos como Antonio Nóbrega, Severino Galvão Filho, Cleudo Freire, Isaque Galvão e tantos outros. Assim, amplia-se o canto sedutor de Chico Antônio.

Evento desvenda Chico Antônio, o embolador de Mário de Andrade




Matéria publicada na Folha Online Ilustrada em 22/08/2005 - 12h16 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u52879.shtml


O Centro Cultural São Paulo terá um evento dedicado a uma figura "culturalmente histórica": Chico Antônio, embolador de cocos de Pedro Velho, no Rio Grande do Norte, personagem de Mário de Andrade em cinco obras ("Os Cocos", "Danças Dramáticas do Brasil", "Vida de Cantador", "Turista Aprendiz" e "Melodias do Boi e Outras Peças"), homenageado por Antônio Nóbrega e Mestre Ambrósio.

Nascido em 1904, Francisco Antônio Moreira morreu no dia 15 de outubro de 1993. Ele é tema de dois livros que serão lançados no CCSP: "O Canto Sedutor de Chico Antônio", de Gilmara Benevides, e "Usina Brasileira: Centenário de Chico Antônio - Caderno de Cocos", de João Natal (ambos da editora EDUFRN).

A potiguar Gilmara apresenta em seu livro um mapeamento dos lugares em que Chico Antônio viveu: Pedro Velho, Montanhas, Canguaretama e Goianinha, no Rio Grande do Norte, além de São Paulo, onde ele se apresentou já no final da vida.Já o artista plástico Natal reuniu as crônicas de Mario de Andrade de "O Turista Aprendiz", o artigo publicado no jornal "A República" e ainda 18 cocos que o escritor colheu de Chico Antônio.

"Usina Brasileira" traz também um depoimento de Antônio Bento sobre o embolador e ele próprio falando de sua vida e de Mario de Andrade. O evento terá ainda a exibição de um documentário sobre Chico Antônio e um debate com Gilmara, Flávia Toni, pesquisadora de música do IEB Instituto de Estudos Brasileiros), e José Saia Neto, arquiteto do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

As três herdeiras cegas de Chico Antônio



Artigo publicado no site:
http://www.itsalltrue.com.br/periodico/coluna/coluna.asp?lng=I&id=159

Por Amir Labaki
10/06/2005

Na semana passada, finalmente chegou às salas de cinema “A Pessoa é Para o Que Nasce”, o documentário de longa-metragem de estréia de Roberto Berliner. Sua versão curta vencera a competição brasileira do É Tudo Verdade 1999, entre outros triunfos. A longa passou por Amsterdã 2003, abriu o É Tudo Verdade no ano passado, entrou em cartaz em Nova York e foi no último mês assunto da telenovela “América” e do “Altas Horas” de Serginho Groisman.

Há muitas camadas em “A Pessoa É Para o Que Nasce”. A modernidade de sua estruturação e das discussões que levanta desafia leituras ligeiras. Roberto Berliner documenta o cotidiano e a evolução da vida de Maria, Regina e Conceição, um trio de cantadoras de coco da Paraíba. A particularidade é que se tratam de três irmãs cegas, nascidas entre 1943 e 1950. Representam, assim, uma geração posterior a do mais importante cantador de coco registrado pelo cinema, o potiguar Chico Antônio (1904-1993). Descoberto por Mário de Andrade, como podemos ler no estupendo “Vida de Cantador” (Villa Rica, 1993), Chico Antônio foi fotografado pelo mestre modernista para quase total esquecimento até que no início dos anos 80 foi redescoberto, dando origem a um disco (No Balanço do Ganzá), sendo homenageado por Rolando Boldrin no programa da TV Globo “Som Brasil” e, sobretudo, ganhando um documentário amoroso de Eduardo Escorel, o clássico “Chico Antônio, Um Herói Com Caráter” (1983).

Suas três legítimas herdeiras viveram trajetória semelhante, agora a um só tempo sintetizada e debatida em “A Pessoa É Para o Que Nasce”. Durante a histórica Caravana Farkas de meados dos anos 60, elas foram filmadas por Geraldo Sarno para “Jornal do Sertão” (1966). Em 1981, um registro local em video lembrou-as em “As Cegas”. Durante a realização de sua premiada telessérie “Som da Rua”, Roberto Berliner redescobriu-as nos anos 90, dando origem ao curta que germinou no longa homônimo.

“A Pessoa É Para o Que Nasce” vai muito além de retratá-las em suas existências de imensas privações e tocantes dramas familiares. Radicalizando as lições da escola antropológica do cinema verdade segundo Jean Rouch, Berliner explicita a intervenção do aparato cinematógráfico em suas vidas e discute o impacto da absorção de sua arte e de suas histórias pela indústria cultural brasileira contemporânea. Tudo com notável transparência, rara entrega e incrível talento narrativo.

O filme se estrutura cronologicamente, marcando os sete anos de sua filmagem: a consagração do primeiro curta, a partir de 1998; a segunda onda de estrelato com a participação no PercPan 2000 ao lado de Gilberto Gil e de Naná Vasconcelos, em Salvador e em São Paulo; o refluxo da onda de celebridade, com a volta à vida pobre na Paraíba, agora numa casinha própria mas ainda com providenciais expedições ao pedido de esmolas na rua, em 2002 e 2003; por fim, já após os primeiros créditos de encerramento, a consagração oficial com o recebimento da Ordem do Mérito Cultural das mãos do presidente Lula, em Brasília, no ano passado.

Maria, a irmã do meio, lidera o trio e protagoniza naturalmente o filme. Ela desarma qualquer possibilidade de paternalismo ao ironizar o próprio Berliner logo de saída dizendo para a câmera e as irmãs: “ele tá pensando que tá conversando com crianças”. Maria demonstra crescente compreensão do projeto ao indagar, mais adiante, como surgiu a idéia, ao afirmar que se engajou nele não por dinheiro mas sim “para ficar conhecida” e, mais tarde, ao perguntar como foi repartido o dinheiro dos prêmios gerado pelo celebrado curta. Faz piada ainda sobre o acúmulo do material rodado, dizendo: “este filme vai ficar grande”.

Noutro momento, antes da primeira onda de reconhecimento, uma das irmãs matiza o real impacto do projeto ao lembrar, sentando-se para um almoço: “A comida não é todo dia assim não. Hoje é especial para o filme”. Se há ganhos, trata-se sobretudo de um progresso simbólico, como deixa claro outra irmã ao confessar o aumento de auto-estima advindo com o processo da filmagem, tornando-a, em suas palavras, “estrela de cinema”.

Berliner é quase obsessivo ao revelar os dilemas éticos enfrentados pelo filme a cada novo patamar dramático. Quando Maria faz uma declaração de amor envergonhada e indireta a ele, insere-se de vez no processo ao filmar uma tensa cena num quarto de hotel em que dissipa a confusão, explicando para Maria e irmãs gostar de todas igualmente “como pessoas especiais e diferentes”.

Quais os limites para se devassar a intimidade de três mulheres cegas de origem humilde e escassa experiência do mundo do espetáculo? É uma adaptação dos questionamentos que desafiaram Frederick Wiseman ao rodar “Titticut Folies” (1968) num hospital psiquiátrico americano ou Nicholas Philibert ao filmar as crianças da França profunda em “Ser e Ter” (2002). Aqui, um pacto extremamente corajoso constrói-se e revela-se no decorrer do filme, até o ápice do desnudamento para as câmeras com a concretização na cena final do sonho de nadar no mar das três irmãs.

“A Pessoa É Para o Que Nasce” valoriza para hoje e registra para a posteridade o talento musical de três excepcionais cantadoras de coco. Discute a ferocidade com que a indústria cultural avança sobre a arte popular. Desfaz confortos e certezas quanto às fronteiras do filmável. Reafirma a barbárie cultural e social brasileira. Numa palavra, é um filmaço.