sábado, 19 de abril de 2008

As três herdeiras cegas de Chico Antônio



Artigo publicado no site:
http://www.itsalltrue.com.br/periodico/coluna/coluna.asp?lng=I&id=159

Por Amir Labaki
10/06/2005

Na semana passada, finalmente chegou às salas de cinema “A Pessoa é Para o Que Nasce”, o documentário de longa-metragem de estréia de Roberto Berliner. Sua versão curta vencera a competição brasileira do É Tudo Verdade 1999, entre outros triunfos. A longa passou por Amsterdã 2003, abriu o É Tudo Verdade no ano passado, entrou em cartaz em Nova York e foi no último mês assunto da telenovela “América” e do “Altas Horas” de Serginho Groisman.

Há muitas camadas em “A Pessoa É Para o Que Nasce”. A modernidade de sua estruturação e das discussões que levanta desafia leituras ligeiras. Roberto Berliner documenta o cotidiano e a evolução da vida de Maria, Regina e Conceição, um trio de cantadoras de coco da Paraíba. A particularidade é que se tratam de três irmãs cegas, nascidas entre 1943 e 1950. Representam, assim, uma geração posterior a do mais importante cantador de coco registrado pelo cinema, o potiguar Chico Antônio (1904-1993). Descoberto por Mário de Andrade, como podemos ler no estupendo “Vida de Cantador” (Villa Rica, 1993), Chico Antônio foi fotografado pelo mestre modernista para quase total esquecimento até que no início dos anos 80 foi redescoberto, dando origem a um disco (No Balanço do Ganzá), sendo homenageado por Rolando Boldrin no programa da TV Globo “Som Brasil” e, sobretudo, ganhando um documentário amoroso de Eduardo Escorel, o clássico “Chico Antônio, Um Herói Com Caráter” (1983).

Suas três legítimas herdeiras viveram trajetória semelhante, agora a um só tempo sintetizada e debatida em “A Pessoa É Para o Que Nasce”. Durante a histórica Caravana Farkas de meados dos anos 60, elas foram filmadas por Geraldo Sarno para “Jornal do Sertão” (1966). Em 1981, um registro local em video lembrou-as em “As Cegas”. Durante a realização de sua premiada telessérie “Som da Rua”, Roberto Berliner redescobriu-as nos anos 90, dando origem ao curta que germinou no longa homônimo.

“A Pessoa É Para o Que Nasce” vai muito além de retratá-las em suas existências de imensas privações e tocantes dramas familiares. Radicalizando as lições da escola antropológica do cinema verdade segundo Jean Rouch, Berliner explicita a intervenção do aparato cinematógráfico em suas vidas e discute o impacto da absorção de sua arte e de suas histórias pela indústria cultural brasileira contemporânea. Tudo com notável transparência, rara entrega e incrível talento narrativo.

O filme se estrutura cronologicamente, marcando os sete anos de sua filmagem: a consagração do primeiro curta, a partir de 1998; a segunda onda de estrelato com a participação no PercPan 2000 ao lado de Gilberto Gil e de Naná Vasconcelos, em Salvador e em São Paulo; o refluxo da onda de celebridade, com a volta à vida pobre na Paraíba, agora numa casinha própria mas ainda com providenciais expedições ao pedido de esmolas na rua, em 2002 e 2003; por fim, já após os primeiros créditos de encerramento, a consagração oficial com o recebimento da Ordem do Mérito Cultural das mãos do presidente Lula, em Brasília, no ano passado.

Maria, a irmã do meio, lidera o trio e protagoniza naturalmente o filme. Ela desarma qualquer possibilidade de paternalismo ao ironizar o próprio Berliner logo de saída dizendo para a câmera e as irmãs: “ele tá pensando que tá conversando com crianças”. Maria demonstra crescente compreensão do projeto ao indagar, mais adiante, como surgiu a idéia, ao afirmar que se engajou nele não por dinheiro mas sim “para ficar conhecida” e, mais tarde, ao perguntar como foi repartido o dinheiro dos prêmios gerado pelo celebrado curta. Faz piada ainda sobre o acúmulo do material rodado, dizendo: “este filme vai ficar grande”.

Noutro momento, antes da primeira onda de reconhecimento, uma das irmãs matiza o real impacto do projeto ao lembrar, sentando-se para um almoço: “A comida não é todo dia assim não. Hoje é especial para o filme”. Se há ganhos, trata-se sobretudo de um progresso simbólico, como deixa claro outra irmã ao confessar o aumento de auto-estima advindo com o processo da filmagem, tornando-a, em suas palavras, “estrela de cinema”.

Berliner é quase obsessivo ao revelar os dilemas éticos enfrentados pelo filme a cada novo patamar dramático. Quando Maria faz uma declaração de amor envergonhada e indireta a ele, insere-se de vez no processo ao filmar uma tensa cena num quarto de hotel em que dissipa a confusão, explicando para Maria e irmãs gostar de todas igualmente “como pessoas especiais e diferentes”.

Quais os limites para se devassar a intimidade de três mulheres cegas de origem humilde e escassa experiência do mundo do espetáculo? É uma adaptação dos questionamentos que desafiaram Frederick Wiseman ao rodar “Titticut Folies” (1968) num hospital psiquiátrico americano ou Nicholas Philibert ao filmar as crianças da França profunda em “Ser e Ter” (2002). Aqui, um pacto extremamente corajoso constrói-se e revela-se no decorrer do filme, até o ápice do desnudamento para as câmeras com a concretização na cena final do sonho de nadar no mar das três irmãs.

“A Pessoa É Para o Que Nasce” valoriza para hoje e registra para a posteridade o talento musical de três excepcionais cantadoras de coco. Discute a ferocidade com que a indústria cultural avança sobre a arte popular. Desfaz confortos e certezas quanto às fronteiras do filmável. Reafirma a barbárie cultural e social brasileira. Numa palavra, é um filmaço.

Um comentário:

  1. Parabéns pela iniciativa de documentar Chico Antônio. É preciso ter coragem prá fazer o que a maioria da as costas, inclusive o estado enquanto "provedor de cultura".
    Chico Antônio é de uma cidade que tem um site www. pedrovelho. com
    teremos o maior prazer em divulgar tal obra !
    parabéns.

    ResponderExcluir